segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Saber viver é vender a alma ao diabo

Gosto dos que não sabem viver,
dos que se esquecem de comer a sopa
(Allez-vous bientôt manger votre soupe,
s... b... de marchand de nuages?")
e embarcam na primeira nuvem
para um reino sem pressa e sem dever.

Gosto dos que sonham enquanto o leite sobe,
transborda e escorre, já rio no chão,
e gosto de quem lhes segue o sonho
e lhes margina o rio com árvores de papel.

Gosto de Ofélia ao sabor da corrente.

Contigo é que me entendo,
piquena que te matas por amor
a cada novo e infeliz amor
e um dia morres mesmo
em "grande parva, que ele há tanto homem!"

(Dá Veloso-o-Frecheiro um grande grito?...)

Gosto do Napoleão-dos-Manicómios,
da Julieta-das-Trapeiras,
do Tenório-dos-Bairros
que passa fomeca mas não perde proa e parlapié...

Passarinheiros, também gosto de vocês!
Será isso viver, vender canários
que mais parecem sabonetes de limão,
vender fuliginosos passarocos implumes?

Não é viver.
É arte, lazeira, briol, poesia pura!

Não faço (quem é parvo?) a apologia do mendigo;
não me bandeio (que eu já vi esse filme...)
com gerações perdidas.

Mas senta aqui, mendigo:
vamos fazer um esparguete dos teus atacadores
e comê-lo como as pessoas educadas,
que não levantam o esparguete acima da cabeça
nem o chupam como você, seu irrecuperável!

E tu, derradeira geração perdida,
confia-me os tues sonhos de pureza
e cai de borco, que eu chamo-te ao meio-dia...

Por que não põem cifrões em vez de cruzes
nos túmulos desses rapazes desembarcados p'ra morrer?

Gosto deles assim, tão sem futuro,
enquanto se anunciam boas perspectivas
para o franco frrrrancais
e os politichiens si habiles, si rusés,
evitam mesmo a tempo a cornada fatal!

Les portugueux...
não pensam noutra coisa
senão no arame, nos carcanhóis, na estilha,
nos pintores, nas aflitas,
no tojé, na grana, no tempero,
nos marcolinos, nas fanfas, no balúrdio e
... sont toujours gueux,
mas gosto deles só porque não querem
apanhar as nozes...

Dize tu: - Já começou, porém, a racionalização do trabalho.
Direi eu: - Todavia o manguito será por muito tempo
o mais económico dos gestos!

*
Saber viver é vender a alma ao diabo,
a um diabo humanal, sem qualquer transcendência,
a um diabo que não espreita a alma, mas o furo,
a um satanazim que se dá por contente
de te levar a ti, a escarnecer de mim...

Alexandre O'Neill

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

"Há um tempo em que as ideias nos tiranizam, em que não passamos de uma vítima infeliz dos pensamentos do outro. Esta “posse” por outro parece ocorrer em períodos de despersonalização, quando os “eus” antagónicos se descolam, por assim dizer. Normalmente, somos impenetráveis às ideias; elas vêm e vão, são aceitas ou rejeitadas, vestidas como camisas e despidas como peúgas sujas. Mas naqueles períodos a que chamamos crises, quando a mente se fende e estilhaça como um diamante sob as investidas de um malho, as ideias inocentes de um sonhador agarram-se, fixam-se nas fissuras do cérebro, e, por qualquer subtil processo de infiltração, provocam uma codificação definida e irrevogável da personalidade. Exteriormente, pouco muda, o indivíduo afectado não começa a comportar-se, de súbito, de modo diferente; pelo contrário, até pode comportar-se de modo mais “normal” do que antes. Esta normalidade aparente assume, de modo crescente, a característica de um dispositivo de protecção. Do disfarce superficial o indivíduo passa para o disfarce interior. A cada nova crise, porém, torna-se mais consciente de uma mudança que não é mudança e sim, antes, a intensificação de algo profundamente oculto nele. Agora, quando fecha os olhos, pode realmente ver-se. Já não é uma máscara: vê sem ver, para ser exacto. Visão sem vista, uma apreensão fluida de intangíveis: a fusão de vista e som - o coração da teia. Aí confluem as personalidades distantes que se esquivam ao contacto rude dos sentidos; aí se sobrepõem discretamente, em vivas e vibrantes harmonias, as notas dominantes do reconhecimento. Não se emprega nenhuma linguagem, não se delineiam quaisquer contornos."

"Sexus", Henri Miller

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

segunda-feira, 20 de outubro de 2008



sábado, 11 de outubro de 2008

Derrida:

"(...) A este propósito, gostaria de pegar naquilo que você disse da descontrução como pensamento fraco. Creio que, em certo sentido é verdade. Se “fraco” pressupõe um relativismo liberal, não; mas se define um modo de estarmos desarmados na relação com o outro, então, sim: há, em muitos dos meus textos um discurso sobre a fraqueza. É uma fraqueza que pode transformar-se na maior das forças. Mas deve haver um momento de desarmamento absoluto, e no fundo o que há pouco dizíamos da ocasião, do acaso, do aleatório, é precisamente o expormo-nos àquilo de que não nos podemos apropriar: ao que há, antes de nós, sem nós; há alguém, alguma coisa, que (nos) advém, e que não tem necessidade de nós para advir. A relação com o acontecimento, a alteridade, o acaso, a ocasião, torna-nos totalmente inermes; e deve-se sê-lo. O deve-se diz sim ao acontecimento; e é mais forte do que eu; existia antes de mim; o deve-se é sempre reconhecimento do que é mais forte do que eu. E o “deve-se” deve-se. Deve-se aceitar que isto (o outro, qualquer outro) seja mais forte do que eu para que alguma coisa advenha. Para que qualquer coisa advenha, é necessário que me falte uma certa força, e que me falte bastante. Se fosse mais forte do que o outro, ou do que advém, nada poderia advir-me. É necessária uma fraqueza, que não necessariamente é debilidade, imbecilidade, deficiência ou doença, enfermidade. É óbvio que para dizermos este tipo de fraqueza seria necessário afinarmos a semântica; mas tem de haver um limite, e a abertura é um limite.

(…) A grande questão é a da beleza, e não posso tratá-la tão rapidamente. Posso desejar que esta responsabilidade, que esta assinatura tenha uma certa forma: mas o que é que me guia na estruturação da forma? É difícil dizer. Mas é verdade que a atenção à composição tem uma relação com o nome próprio, com o modo de nos vestirmos e de aparecermos. É preciso que a forma seja esta, aí está. Não sei se lhe chamaria estética, porque não sei muito bem, neste caso, o que significa isso; tem a ver com o desejo, com a beleza, o sexo e a morte.

(…) Aconteceu-me dizer, por exemplo, que vou no sentido da desconstrução porque é isso o que advém, e é melhor haver um porvir do que não o haver. Para que qualquer coisa advenha, é necessário que haja um porvir, e portanto, se há um imperativo categórico, é fazermos todo o possível para que o porvir continue aberto. Sinto-me muito tentado a dizê-lo, mas, ao mesmo tempo, em nome de que é que o porvir valeria mais do que o passado? Mais do que a repetição? Porque o acontecimento valeria mais do que o não-acontecimento? Aqui poderia descobrir qualquer coisa de semelhante a uma dimensão ética, dado que o porvir é a abertura na qual o outro advém, e o valor do outro ou da alteridade serviria, no fundo, de justificação. È o meu modo de interpretar o messiânico: o outro pode vir, pode não vir, não posso programá-lo, mas deixo lugar para que possa vir se vier, é a ética da hospitalidade.”

"O Gosto do Segredo", Jacques Derrida e Maurizio Ferraris,
tradução de Miguel Serras Pereira
ISBN: 972-754-227-1